Emily Dickinson

EMILY DICKINSON: A VISÃO IRÔNICA DO MUNDO

Carlos Daghlian 



O assunto deste livro é Emily Dickinson, uma das fontes da lírica moderna, conforme propôs Mário Faustino (1930-1962), que não teve dúvidas em declarar que os poemas dela vinham se tornando “uma força transformadora da poesia mundial”. Manuel Bandeira, contestando Adolfo Casais Monteiro, que afirmou sobre os poetas isolados que estes correm o risco de ficarem atrasados em relação aos seus contemporâneos, escreveu que a afirmação do crítico português não valia para Emily Dickinson, um espírito de exceção, arrematando esta observação da seguinte maneira: “Não terá havido no mundo poeta mais isolado. No entanto, esse isolamento, acredito, concorreu muito para fortalecer a originalidade da norte-americana, para torná-la contemporânea da geração atual e não da sua”.



Essas palavras de Manuel Bandeira saíram em artigo publicado em junho de 1957. Se as tivesse publicado hoje, continuariam valendo. Emily Dickinson continua contemporânea: seus poemas são o mais contrário do romantismo efusivo e manhoso que conhecemos na nossa literatura do mesmo período. Muito dessa excepcionalidade e de sua contemporaneidade está no fato de que seus textos tendem para a síntese, para a tensão semântica conseguida pela aproximação contrastante de termos comuns, para o estranhamento e a singularidade das imagens, sugerindo mais que mostrando, mostrando mais que explicando. Acho que essa tensão ajuda a entender os seus inusitados esticamentos gráficos. Acho também que a ironia se torna um procedimento figurativo e estruturante dessa linguagem antissentimental. Esse procedimento constitui o foco deste livro de Carlos Daghlian.



O texto mostra de que modo a ironia se faz presente em muitos poemas de Emily Dickinson, assumindo diversas configurações conforme o objeto de sua expressão: o próprio eu, a poesia, a palavra, as crenças e os saberes, os comportamentos, a religião e o ser, seja o contingente, seja o absoluto. Para isso ele se detém diante de cada poema e o analisa com pertinência e singeleza. Fica claro, então, um paradoxo: por trás de sua linguagem antissentimental Emily Dickinson foi, dentre poucos, quem realizou em sua plenitude a ironia romântica tal como a conceberam Schlegel e, depois, Kierkegaard.



O autor deste livro, Carlos Daghlian, é professor graduado em Letras Anglo-Germânicas pela USP, em 1962, doutor em Literatura Norte-Americana pela mesma Universidade, em 1972, livre-docente pela UNESP em 1987 e titular, nessa mesma Universidade, em 1993, títulos conseguidos com teses e estudos na mesma área em que se formou. Atualmente está aposentado, mas não inativo, embora já possa ostentar outros títulos: o de membro (cadeira 35) da Academia Riopretense de Letras e Cultura, o de professor emérito pela UNESP e o de presidente emérito da ABRAPUI (Associação Brasileira de Professores Universitários de Inglês) da qual foi cofundador, tendo sido seu presidente durante décadas. É um dos professores universitários mais admirados não só na UNESP, mas em todo o sistema universitário brasileiro, graças às suas qualidades intelectuais, às suas atividades como orientador de mestres e doutores, e a seu espírito conciliador e agregador. Acho que seu humor contagiante equilibra-se com uma virtude rara hoje em dia, a humildade, que nele nada tem de conformismo com a submissão ou a subserviência.



Duas de suas preferências como pesquisador da literatura norte-americana viveram no século XIX: o romancista Herman Melville e a poeta Emily Dickinson. Aquele foi tema de sua tese de doutorado, esta, de sua tese de livre-docência. A tese de doutorado, devidamente modificada e atualizada, foi publicada em 2011 por esta editora com o título de As técnicas de persuasão em Moby-Dick; a de livre-docência, também atualizada, constitui este livro.



Seu fascínio por Emily Dickinson pode ser sentido quando se acessa e se lê o site que ele criou e organizou, identificado com o nome da poeta; mas também se constata com as traduções que fez e comenta, com as comunicações em congressos e seminários acadêmicos, e com os artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais de prestígio. Nem se contem as notícias sobre a poeta, sua poesia e os textos de divulgação dos eventos que acontecem sobre a mesma.



Este livro reflete essa experiência e tal saber.



Antonio Manoel dos Santos Silva

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